3 Erros
1.
Estava em Espanha sem querer: salta-se a fronteira sem se dar por isso.
Do outro lado da estrada, perto de um penedo, vi um vedor: um homem à procura de uma corrente de água subterrânea, com o auxílio de um galho bifurcado (prática também conhecida como radiestesia). Caminhava com solenidade. Quis parar para o fotografar, mas não sabia o que dizer, nem que língua falar: um misto de vergonha e receio. Continuei pela estrada com um sentimento de perda e de angustia crescentes, proporcionais ao aumento da distância que nos separava. Parei: ensaiei entredentes a minha apresentação (bilingue, por si acaso). Voltei atrás, à estrada – perto do penedo. Já não estava lá. Nunca mais o vi.
2.
O Senhor António das Furnazinhas fez as fundas, com corda de pita, de todos os rapazes da aldeia. Alguns “rapazes” eram agora da idade dele e ainda guardavam e gabavam a qualidade das fundas, entrelaçadas há anos, com corda de pita, pelo Senhor António.
Perguntei se ele ainda sabia lançar pedras com a funda. Disse que sim e sorriu. Perguntei se o podia fotografar a lançar uma pedra. Disse que sim e sorriu. Apontei a câmara: a pedra não foi muito longe, nem muito tensa, nem muito certeira e o Senhor António magoou-se nas costas com o movimento brusco. Nem o cheguei a fotografar.
3.
Comecei a trabalhar à noite numa loja da Kodak, uns meses depois da minha filha ter nascido. Atendi uma rapariga com um vestido vermelho com um padrão de flores (não tenho a certeza da cor, mas lembro-me que eram flores de amendoeira). Deu-me uma caixa preta de rolo fotográfico e antes de ter tempo para me avisar, abri-a. Foi um movimento mecânico. No interior não estava a cassete, mas sim a película: desprotegida, exposta e agora velada e estragada. Explicou-me que uma amiga teve de tirar a película de dentro da cassete, numa casa-de-banho às escuras – não percebi porquê. E que a amiga disse para ela avisar logo na loja para não abrirem a caixa, sob pena de ficar sem as fotografias. Começou a chorar enquanto descrevia as imagens perdidas. Eram todas de umas férias de verão num país estrangeiro, perto do mar. Lembro-me do vestido, mas não me lembro qual era o país.
Valter Ventura
para a exposição "Erro"
atelier A Homem Mau
Lisboa, 2020
3 Errors
1.
I was in Spain by accident: you jump the border without realizing it.
On the other side of the road, near a boulder, I saw a dowser: a man looking for a stream of underground water, with the help of a forked branch (a practice also known as radiesthesia). He walked with solemnity. I wanted to stop and photograph him, but didn't know what to say or what language to speak: a mixture of shame and fear. I continued along the road with a feeling of loss and growing anguish, commensurate with the increase in the distance that separated us. I stopped: rehearsed my presentation to myself (bilingual, por si acaso). I went back to the road – near the boulder. He was no longer there. I never saw him again.
2.
Mister António of Furnazinhas made the slingshots, with pita rope, for all the boys in the village. Some “boys” were now his age and still guarded and boasted about the quality of the slingshots, intertwined years ago with pita rope by Mister António.
I asked if he still knew how to throw stones with a slingshot. He said yes and smiled. I asked if I could photograph him throwing a stone. He said yes and smiled. I pointed the camera: the stone didn't go too far, not too tense, not too accurate and Mister Antonio hurt himself in the back with the sudden movement. I didn't even get to photograph him.
3.
I started working at night in a Kodak store a few months after my daughter was born. I saw a girl in a red dress with a pattern of flowers (I'm not sure what color it was, but I remember it was almond flowers). She gave me a black photo roll box and before I had time to know I opened it. It was a mechanical movement. Inside was not the case, but the film: unprotected, exposed, and now veiled and spoiled. She explained to me that a friend had to take the film out of the cassette, in a dark bathroom – I didn't understand why. And that her friend told her to let her know right away at the store not to open the box, otherwise she would ruin all photographs. She started to cry as she described the lost images. They were all from a summer vacation in a foreign country, near the sea. I remember the dress, but I don't remember which country it was.
Valter Ventura
for the "Erro" [Error] exhibition
atelier A Homem Mau
Lisbon, 2020